O Confinamento
21 de outubro de 2011
Aos cinco anos de idade, o animalzinho já vivera mais de um terço do tempo em que os neurônios da área cognitiva de sua espécie animal têm para fazerem sinapses fundamentais, que lhe permitiriam orientar-se com autonomia no mundo deveria continuar a viver. Esse mundo, para o animal da espécie à qual esse pequeno pertence, é coabitado basicamente por bilhões de outros animais de sua espécie, e trilhões de outras espécies. Mas, a ele não foi dado o direito de saber disso.
O espaço no qual esse animalzinho precisa se mover para autoprover-se com eficiência, é constituído por objetos materiais naturais e por outros, edificados pelos humanos para atenderem suas necessidades de abrigo, proteção, defesa, e para fazerem circular aqueles objetos destinados a passarem da posse de uma mão para outras. Os cheiros, as imagens, os sons, o contato e o sabor dos objetos destinados a ficarem do lado de fora do corpo, e dos que podem ser colocados para dentro do corpo, formam uma miríade de impressões nas células cognitivas do cérebro dos pequenos animais. Mas, não podendo fazer experiências cognitivas dessa ordem, sua mente limitava-se a distinguir apenas uma meia dúzia de figuras e cheiros vinculados ao alimento. Os conceitos, elaborados lentamente pelo esforço repetido dos animais maiores em levarem os pequenos à compreensão do que pode ser benéfico ou maléfico para eles, ficaram restritos àquela meia dúzia de alimentos que compunham a ração diária.
A infância é o tempo no qual o cérebro dos jovens de cada espécie formata, armazena e aprende a usar as impressões tornadas imagens, para que possam movimentar-se no mundo sem estarem apegados ao corpo de um adulto de sua espécie. Mas, para o pequenino referido no início, as únicas impressões obtidas diretamente dos objetos materiais, estavam limitadas ao que o seu “quarto”, o local de confinamento completo ao qual fora condenado, ao nascer, continha. Além das paredes dessa prisão domiciliar, seus olhinhos não haviam visto, jamais, a luz natural. Seus ouvidos não haviam ouvido, jamais, o som de uma palavra que não houvesse sido pronunciada por sua mãe, ou o som dos demais objetos que constituem o mundo material em movimento fora do espaço do confinamento. Sua boca não havia tocado, entre milhões de alimentos disponíveis no mercado, a não ser uma dezena deles, a maioria empacotada ou enlatada, sua ração diária. Fora essa ração sem nutrientes, o único alimento que recebera de forma natural, fora o leite de sua mãe.
No sistema de confinamento completo, o pequeno animal jamais havia visto ou interagido com outro, de outra espécie, ou mesmo da sua. O confinamento era completo e absoluto, quer dizer, isolamento total. Apenas sua mãe lhe fazia companhia. Vieram da mente dela os conceitos que ele dominava. Nada lhe havia acontecido que não fosse através dela. Ele já estava no mundo, mas o confinamento e isolamento não lhe permitiam nascer como indivíduo, com impressões próprias, obtidas ao mover-se no espaço sem a presença do corpo de sua mãe. Seu cérebro havia recebido muito estímulo, mas todos limitados ao que o corpo de sua mãe, igualmente confinada e isolada, lhe podia oferecer. Nunca esse animalzinho havia trocado uma palavra com outro ser de sua espécie.
A ração diária que recebiam do carcereiro não bastava para suprir suas necessidades de vitaminas, minerais e aminoácidos. Jamais recebiam um raio de sol direto. O espaço ao qual estavam confinados era completamente isolado do mundo exterior. Jamais ouviam um som, a não ser o de uma TV, pela qual imagens de um mundo, o “lá fora”, entravam em seu “quarto”. Estavam privados, mãe e filho, de todas as experiências que permitem a uma mente de sua espécie se desenvolver e se tornar útil para a autopreservação do próprio organismo.
A visão desse animalzinho, havendo se formado no espaço de um cubículo no qual nascera e do qual jamais havia saído até os cinco anos de idade, estava completamente atrofiada. Faltava-lhe a perspectiva, que, no seu caso, não passava de uns quatro metros de fundo. Ele nunca vira outros de sua espécie andando, nunca vira a figura de outros, mais larga, mais fina, mais alta, mais baixa do que a figura do corpo de sua mãe. Vivera com ela e através dela nesses cinco anos. Mas não lhe fora permitido viver além dela. Não conhecia os progenitores de sua mãe, nem vira os amigos dela. Tudo estava reduzido em sua mente, apesar de sua inteligência não ter cedido à atrofia completa. Aos cinco anos, ainda não fôra dado a ele o direito de “nascer”. Sua mãe havia sido obrigada a mantê-lo num estado de gestação fora do útero, o que lhe salvou do embotamento total. Mas, bem o sabemos, viver através da mente de outro não é a forma mais apropriada de configurar a própria mente.
“O Quarto”, romance de Emma Donoghue, é o relato mais contundente do mal que podemos fazer a um animal, confinando-o, do nascimento à morte, a um espaço limitado, tanto no que diz respeito às interações com outros seres vivos, quanto com os objetos do mundo externo, esses que precisam ser vistos, tocados, cheirados, ouvidos, para que um mapa dos caminhos por onde se vai andar ao longo da vida seja formado nas proporções devidas. O relato de Donoghue é sobre um menino que nasce no cativeiro onde sua mãe, sequestrada há três anos, está confinada pelo sequestrador. Até os cinco anos de idade os dois vivem nesse cubículo.
O que isso tem a ver com os animais? Isso é tudo o que fazemos a eles, quando os forçamos a nascer e viver num ambiente artificial, no qual as únicas impressões que chegam aos seus cérebros são as que emanam dos atos do confinador. Atrofiamos a mente dos animais, quando a privamos de tudo o que é essencial para formar conceitos necessários à vida de sua espécie.
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